sábado, 7 de janeiro de 2012

Alagados

Sobre a maré imunda, de água emporcalhada, repleta de todo tido de lixo estão os barracos de madeira tosca, feito aves agourentas a pousarem sobre o mar - outrora área de manguezal, hoje uma degradação total. Ali, sob os olhos de todos que passam com seus carrões pela pista - e ignoram àquelas construções e àqueles farrapos de gente a brincar de sobreviver.
Os alagados so são percebidos quando cometem, num ato de desespero, ou de falta de  moral, cometem algum delito simples - um furto de uma lata de leite em pó, num mercadinho das proximidades. Quando não ocorre o linxamento, a polícia mata - troca de tiros.

Crianças dos Alagados são percebidas quando um fotógrafo, em busca de nome as registra, sim, miséria também vai ás galerias frequantadas pelos intelectuais, artistas - e pela  burguesia burra, cheia de pose, arrogância. Alagados - Paralamas do Sucesso - música de sucesso que explodiu nas rádios e em programas de tv, de Herbert Vianna. Miséria também é música, de sucesso.
Ali, caminho é madeira frágil, de mil corredores perigosos, a maré logo abaixo feito um bicho devorador, em busca de crianças displicentes, de mães descuidadas.
No barraco que ja viveu muitos anos de chuva e de sol escaldante - porisso apresentava certa curvatura em todo seu conjunto para um dos lados, ali habitava a família de Maria - uma Maria como as muitas do Brasil. Tinha dois filhos, mas, tivera muitos partos, a grande prole pereceu. Crianças desnutridas não vingam - a fome mata mais do que nas guerras. Fazemos vistas grossas.

Maria não se rende, nem reclama da vida. Acreditava que era tudo assim na sua vida, porque deus queria assim, isso mesmo, um deus com d minúsculo. Sem o saber tinha no seu íntimo um Deus de D maísculo - apesar de não ter uma religião - recusara frequentar o culto aos domingos. Achavam que era uma incrédula, uma mulher sem fé, uma Maria sem fé - quando na verdade não tinha o dízimo para ofertar, nem a domingueira para se exibir como os demais, com seus ternos e gravatas, em plena favela sobre a maré. Nunca optou pelo aborto, como as demais, que lhe rendiam todo tipo de chás, métodos primitivos. Dava bons conselhos aos meninos que não queriam a escola, mas o furto fácil. deixava de comer para alimentar seus dois filhos quando a comida tava escassa á mesa. Um Deus maíúsculo que lhe rendia orar antes de deitar-se, e ao acordar.
Quando jovem, negra de corpo de curvas perfeitas, bunda grande e seios fartos. Boca de lábios grossos. Nunca foi á pista, como suas vizinhas - cada uma com um preço por um naco de prazer para os solitários que passavam de carro pela Suburbana.
O Deus com D maiúsculo a impulsionava a procurar o que fazer, com dignidade - lavar roupa pra classe média, passar ternos e gravatas. Fazer faxina.
O tempo ia passando, dominada pelo desãnimo. Nada mudava ao passar dos anos - sabia como ninguém o que era passar fome, dificuldades. Andar longos quilômetros para ir á casa da madame pra economizar o transporte que sobraria para o pão. Natal sem papai Noel, fim-de-ano sem festa. Carnaval sem bloco - ia catar latinhas pra ter uma variação de renda durante a folia.

Naquela manhã cinza, a muito custo ergueu a sua carcaça da cama improvisada com madeira.
- Julinho...acorda e vou logo avisando - disse, com pesar para o garoto de 11 anos, sonolento.

- Ja sei, ja sei hoje não tem pão, a gente vai ficar com fome, caso eu não va pedir na pista...

- É isso, mesmo, moleque e não suma como fez na semana passada. Nada de pegar o dinheiro que te dão e ir comprar pipa, ou lanche na rua. Nada de picolé ou geladinho, entendeu...
- Ora , mãe, que vida essa. Queria ser como os outros meninos. Brincar de empinar pipa, e poder pelo menos uma vez na vida chupar um geladinho. Compra a caixa de picole´, que eu posso vender e ter dinheiro. Não quero saber de escola, mesmo.

- Não reclama filho, que é pecado, Deus sabe o que faz.
O Deus de D maiúsculo. 
- No ano que vem você volta pra escola, estudando poderá ser um cobrador de ônibus, quem sabe motorista, como o safado do seu pai, que te abandonou.
A maré, revolta sacudia os barracos frágeis - subia no ar um mau odor de esgoto.
Vamos aguardar, com ansiedade a Copa.








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